quinta-feira, 16 de abril de 2009

A dupla face das decisões do STF


Quando estão em pauta os limites da atuação do Supremo Tribunal Federal, tendemos a concentrar nossa atenção no resultado imediato das suas decisões. Quem ganhou? Quem perdeu? Considere, por exemplo, a recente decisão em caráter liminar do STF afirmando ser constitucional o entendimento do presidente da Câmara, deputado Michel Temer, de que medidas provisórias pendentes de apreciação pelo Congresso só trancam a pauta para deliberação de leis ordinárias, não afetando outros tipos de normas. Segundo o ministro Celso de Mello, a tese de Temer “parece demonstrar reverência ao texto constitucional”. O que isso significa para a relação entre os poderes da República? Se pensarmos apenas no resultado imediato, é natural enxergar simples vitória da Presidência da Câmara. Esse olhar, porém, é incompleto. Os julgamentos do STF têm dupla face.

O lado mais aparente é a solução da questão específica levada ao tribunal. Mas há mais. Em cada decisão, de forma mais ou menos explícita, o Supremo manifesta também o seu entendimento de qual deve ser a extensão de seus poderes em relação ao Executivo e ao Legislativo. Tribunais não apenas decidem conflitos, mas oferecem à sociedade razões para a tomada dessas decisões — o que os juristas chamam de “motivação” ou “fundamentação”. Na construção da motivação, tribunais hábeis podem expandir o seu poder no longo prazo, mesmo quando decidem favoravelmente ao Executivo ou ao Legislativo aqui e agora — e redesenhar a estrutura da separação de poderes, mesmo em casos de pouco impacto. Em 2004, por exemplo, em ação extinta sem julgamento do mérito, o ministro Celso de Mello aproveitou a oportunidade para afirmar que o STF poderia anular um veto do presidente a projeto de lei de diretrizes orçamentárias elaborado pelo Congresso, caso entendesse ser o veto incompatível com “políticas públicas já previstas na Constituição”. De lá para cá, essa decisão já foi citada várias vezes em votos e discursos dos ministros do STF. Se, em um futuro próximo, o tribunal declarar inconstitucional um veto do presidente nessas condições, estará apenas trilhando caminho já anunciado.

Não se trata de estratégia nova, nem restrita ao Brasil. Remonta à primeira decisão em que um tribunal expressamente afirmou o seu poder de declarar inconstitucionais leis democraticamente aprovadas: o caso Marbury vs. Madison, da Suprema Corte dos EUA (1803). O presidente da Corte, John Marshall, agradou ao presidente dos EUA, Thomas Jefferson, ao negar que a Suprema Corte tivesse competência para ordenar que o governo empossasse o juiz Marbury, nomeado no apagar das luzes do mandato do presidente anterior. Mas, na mesma decisão, defendeu que cabia ao Judiciário declarar inconstitucionais leis regularmente adotadas pelo Congresso Nacional — concepção inovadora para a época e que não estava explícita na Constituição dos EUA. Satisfeito com a preservação de sua autoridade naquele caso especifico, Jefferson demorou anos para questionar essa afirmação de poder judicial. A decisão de efeitos imediatos quase insignificantes — a posse de um juiz — moldou o sistema político dos EUA e se tornou uma das mais influentes na história do constitucionalismo mundial.

A todo momento, no menor dos casos, um tribunal pode estar em pleno — e público — processo de remarcação das fronteiras do seu poder. Muitas vezes, Congresso e o presidente tendem a não colocar em questão a fundamentação que lhes garantiu a vitória no curto prazo. Parecem esquecer que toda decisão judicial olha simultaneamente para o caso presente e para o futuro. Ficam, então, surpresos quando o já anunciado poder do Supremo (e que bem os serviu no passado) é usado de forma contrária aos seus interesses atuais.

Parece ser o caso na recente vitória da Presidência da Câmara. Por trás da boa notícia (“você venceu”), a segunda face: a tese prevalece apenas porque o Supremo a considera meritória (“você venceu porque eu concordo”). O STF poderia, talvez, ter afirmado alguma margem de apreciação que o presidente da Câmara tem na interpretação do texto constitucional (“você venceu porque está na sua esfera de competência adotar essa dentre outras interpretações possíveis”). Mas não foi o caso: a decisão confirmada enfatizou ser do Supremo a palavra final sobre interpretações constitucionais feitas por parlamentares quanto às regras do processo legislativo. Não cabe aqui discutir se deve ou não ser assim. Mas é certo que, com a decisão que hoje agrada à mesa da Câmara, há uma afirmação do poder do Supremo. Nesse cenário, contabilizar resultados é insuficiente para entender a expansão do poder judicial.

Diego Werneck Arguelhes - Doutorando em direito pela Universidade Yale (EUA) e professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ)
Publicado no Correio Braziliense de 16 de janeiro de 2009

Um comentário:

Fernando Cintra disse...

Interessante seu texto. Sou estudante de direito, e fiquei pensando... O STF tem competência para analisar a constitucionalidade de normas infraconstitucionais, sejam atos do Executivo, sejam atos do Legislativo. Mas poderia uma decisão do STF ser, ela mesma, inconstitucional? Parece-me que sim. Nesse caso, quem seria competente para apreciar a questão? O próprio STF, por meio de ação rescisória talvez?